A BARRA DE FERRO QUE AJUDOU A ENTENDER MELHOR O NOSSO CÉREBRO

Em 1848, o trabalhador Phineas Gage, de 25 anos, estava explodindo pedras na construção de uma linha ferroviária em Cavendish, nos EUA. Uma dessas explosões causou um acidente, fazendo uma barra de ferro atravessar a sua face. Apesar da perda de um olho e de parte do cérebro, Gage se recuperou e voltou a trabalhar.

Gage era uma pessoa responsável, socialmente bem adaptado e bem quisto pelos colegas. Após o acidente, não foi notada qualquer alteração em sua inteligência e memória. Porém, Gage não era mais o mesmo! Ele passou a ser grosseiro, a ofender pessoas ao seu redor e perdeu o senso de responsabilidade.

O médico John Harlow, que o atendeu, relatou a relação da perda de massa cefálica com a mudança de personalidade. Quase 150 anos depois do acidente, medidas do crânio de Gage (que foi preservado) e modernas técnicas de neuroimagem foram usadas para reconstituir o acidente e determinar a localização da lesão (ver figura).

O dano do cérebro de Gage envolveu a região do córtex pré-frontal esquerdo e direito. Tal lesão ocasiona um defeito na tomada de decisão racional e no processamento da emoção.

“A história de Gage foi o começo histórico do estudo da base biológica do comportamento” (Antonio Damasio, neurocientista e autor do estudo que reconstituiu o acidente).

REFERÊNCIA:

H Damasio, T Grabowski, R Frank, AM Galaburda, AR Damasio. The return of Phineas Gage: clues about the brain from the skull of a famous patient. Science 1994. Vol. 264, Issue 5162, pp. 1102-110.

SINUS PRÉ-AURICULAR, UM TRAÇO DE NOSSOS ANCESTRAIS?

Os peixes possuem fendas laterais próximas da cabeça que permitem a circulação de água para oxigenar as suas brânquias. Tais estruturas chamadas arcos e fendas branquiais correspondem às dobras abaixo da cabeça de seus embriões, que sofrem poucas modificações até o nascimento. Os arcos e fendas branquiais também aparecem nos primeiros estágios dos embriões de todos os vertebrados terrestres, incluindo os humanos. Ao longo da evolução dos vertebrados terrestres esses arcos e fendas branquiais se modificaram e deram origem a estruturas relacionadas ao ouvido, mandíbula e regiões da faringe. A presença dessas estruturas mostra a ancestralidade comum de todos os vertebrados terrestres. Viemos todos de um peixe que se aventurou ou foi forçado a viver fora da água há cerca de 400 milhões de anos. Embriões humanos e de outros vertebrados compartilham o plano corporal básico dos peixes. Normalmente as fendas branquiais se fecham ao longo do desenvolvimento, mas em alguns caso pode sobrar um pequeno orifício. Isso é verificado no pescoço de alguns recém-nascidos e pode ser corrigido cirurgicamente. Além destes casos, cerca de 1% das pessoas possuem um orifício na frente da orelha, chamado sinus pré-auricular. Atribui-se a existência desse buraquinho ao fechamento incompleto da fenda branquial mais anterior do embrião.

ORIENTANDO AS NOSSAS CRIANÇAS

Muitas crianças (e mesmo adultos) não sabem indicar onde estão os pontos cardeais (norte, sul, leste, oeste). Já, usando uma bússola, todos conseguem dizer prontamente. Isso porque o seu ponteiro magnetizado aponta para o norte geográfico*, que fica próximo do polo sul magnético da Terra.

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O ponteiro da bússola, que é um pequeno imã, sofre atração do campo magnético da Terra, que é um grande ímã. Entenda aqui por que a Terra é um ímã gigante. Os ímãs possuem dois polos que podem se atrair ou se repelir.

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Dessa forma, o ponteiro da bússola se alinha ao campo magnético da Terra, ou seja, o seu polo sul se volta para o polo norte magnético da Terra e o seu polo norte (geralmente a parte vermelha do ponteiro) se volta para o polo sul magnético da Terra, o que corresponde aproximadamente ao polo norte geográfico.

Os celulares possuem uma bússola e, por meio de aplicativos, podemos instalar uma similar às manuais. No entanto, hoje em dia, o modo mais usual é o emprego do GPS (Global Positioning System, em português, “Sistema de Posicionamento Global”) um sistema em que o celular recebe sinais de satélites e que, além de indicar os pontos cardeais, fornece informações das coordenadas geográficas e altitude.

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O GPS fornece informações dos pontos cardeais, das coordenadas geográficas (latitude e longitude) e da altitude.

MAS COMO PODEMOS NOS ORIENTAR SEM ESSES DISPOSITIVOS?

O Sol nasce no leste e se põe no oeste. Se apontarmos o nosso braço direito para o local onde é o nascer do Sol (leste) e o braço esquerdo para o poente (oeste) teremos o norte em nossa frente e o sul em nossas costas.

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Na realidade, o ponto cardeal leste e oeste será determinado com mais precisão dessa forma no outono e na primavera. Sendo mais exato ainda teríamos que observar o nascente e poente no início do outono ou da primavera (por volta de 20 de março ou 21 de setembro), nos chamados solstícios – veja aqui e aqui. A inclinação do eixo da Terra em relação a sua órbita ocasiona uma mudança na linha de deslocamento do sol. Dessa forma, no inverno o Sol nasce e se põe mais ao norte e no verão mais ao sul.

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E COMO NOS ORIENTAMOS À NOITE?

Podemos nos orientar com a Lua do mesmo modo que fazemos como o Sol, já que ela nasce no leste e se põe a oeste. Mas é possível nos orientarmos pelas estrelas. No hemisfério sul isso pode ser feito com o auxílio da constelação mais conhecida por aqui, que é a do Cruzeiro do Sul. Não é correto dizer que o Cruzeiro do Sul aponta para o sul geográfico da Terra, uma vez que o movimento das estrelas no céu é circular, como mostra a figura abaixo.

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No entanto, o Cruzeiro do Sul pode nos ajudar a localizar facilmente o polo sul geográfico, já que o seu “braço” maior aponta para o polo sul celeste, e o polo sul geográfico terrestre está localizado logo abaixo. Para determinarmos o polo sul celeste, calcule 4 vezes e meia o eixo mais comprido do Cruzeiro do Sul, aí estará o polo sul celeste e o polo sul geográfico abaixo desse ponto. Basta traçarmos uma linha reta no sentido do horizonte.

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Hoje em dia a bússola e o GPS permitem a nossa rápida orientação, mas por milhares de anos nos orientamos olhando para o céu. O celular nos desconectou um pouco do mundo real e muitos ainda não compreendem alguns princípios básicos. É sempre saudável trazermos nossas crianças de volta a essa realidade, que no passado despertou a curiosidade de cientistas, culminando com inúmeras descobertas. Tais descobertas nos fizeram compreender melhor o universo e revolucionaram o mundo! Precisamos que nossas crianças continuem fazendo o mundo avançar!

* Na realidade isso é uma simplificação, pois o ponteiro magnético da bússola fica orientado com a linha de indução magnética da Terra, cuja direção varia um pouco entre localidades.

COMO SABEMOS QUE A LUZ (TAMBÉM!) É UMA ONDA

No século XVII Isaac Newton propôs que a natureza física da luz era material, ou seja, ela consistia na propagação de um fluxo de partículas microscópicas. Posteriormente, outros cientistas defenderam a natureza ondulatória da luz. Foi somente no início do século XIX que o médico e físico Thomas Young por meio de uma série de estudos demonstrou a natureza ondulatória da luz. O mais famoso foi o experimento da dupla fenda.

O EXPERIMENTO DA DUPLA FENDA – Na experiência de Young, são utilizados três anteparos. O primeiro possui uma fenda, o segundo tem duas e no último ocorre a projeção da luz. Quando passa pela primeira fenda a luz sofre difração. A difração é a capacidade da onda se espalhar e contornar obstáculos (se estivermos em uma sala escura e houver um pequeno furinho que permite a entrada de luminosidade externa podemos constatar tal fenômeno). Veja o fenômeno de difração nos links: https://www2.dawsoncollege.qc.ca/…/Light_diffraction-2.gif e https://global.canon/en/technology/s_labo/light/001/03.html

Outro aspecto ondulatório da luz pode ser verificado quando ela atravessa as duas fendas do segundo anteparo. Após a luz passar pelas duas fendas, acontece o fenômeno de interferência de ondas. A interferência pode ser construtiva ou destrutiva. Na construtiva as ondas “se somam” o que resulta no aumento de intensidade (ver figura). Na interferência destrutiva as ondas podem se anular. Como consequência da interferência, o resultado da projeção da luz que atravessa as duas fendas é um conjunto de faixas bem iluminadas alternadas por áreas mal iluminadas (franjas, ver figura). Veja como é o fenômeno por meio de uma analogia com ondas de água: https://www.youtube.com/watch?v=0cztIj1m7e4

O experimento de Young demonstrou de modo inquestionável a natureza ondulatória da luz. Porém, no início do século passado o físico Albert Einstein, para a explicar o efeito fotoelétrico, considerou que luz não se comportava como uma onda, mas sim como uma partícula, o fóton! Isso lhe rendeu o prêmio Nobel de 1921. Bem, mas isso é outra história. Hoje admite-se que a luz ora se comporta como onda, ora como partícula!

VÍDEO DO EXPERIMENTO DAS DUAS FENDAS DE YOUNG: https://www.ashleybucsek.com/x-ray-diffraction-lesson

COMO SABEMOS A DISTÂNCIA DAS ESTRELAS?

Entre as estrelas que avistamos à noite, a mais próxima (Alpha Centauri) está a 40 trilhões de quilômetros da Terra. Mas como é possível calcular tal distância? A resposta é: usando a PARALAXE!

PARALAXE: coloque o seu dedo na frente do rosto e feche o olho esquerdo. Agora repita somente com o olho direito fechado. Veja que o seu dedo “se move” em relação ao plano de fundo. É esse deslocamento aparente que chamamos de paralaxe.

PARALAXE ESTELAR: os astrônomos observam exatamente a mesma coisa para a uma estrela vizinha. Porém, ao invés de usar os dois olhos, eles usam a posição da Terra em relação ao Sol. Assim, janeiro seria o seu olho esquerdo e junho seria o seu olho direito, quando a Terra está do outro lado do Sol. Dessa maneira, pode-se constatar o deslocamento dessa estrela em relação as mais distantes do plano de fundo.

O CÁLCULO DA DISTÂNCIA DA ESTRELA: Com o deslocamento aparente determina-se ângulo α (vide figura). A distância entre o Sol e a Terra (d) é conhecida. Fazendo o uso simples da trigonometria é calculado a distância da Terra até a estrela.

O PRIMEIRO WIRELESS DO MUNDO!

O físico e matemático James Maxwell deu importante passo para melhor compreensão do magnetismo. A partir das ideias de outros cientistas (e.g. Gauss, Ampére, Faraday) ele formulou um conjunto de equações que descreve os fenômenos eletromagnéticos. Maxwell (1873) previu que perturbações eletromagnéticas geradas em um local deveria se propagar pelo espaço à velocidade da luz.Foi o físico Heinrich Hertz, no final do século XIX, que demonstrou experimentalmente a existência das ondas eletromagnéticas, conforme a concepção de Maxwell.

O EXPERIMENTO DE HERTZ

Heinrich Hertz imaginou que, se as predições de Maxwell estivessem corretas, ondas eletromagnéticas seriam geradas a partir de faíscas elétricas e poderiam ser captadas por um receptor.Hertz construiu um dispositivo com duas esferas de bronze próximas entre si. Tais esferas ficavam conectadas a uma bobina de indução, que produzia uma alta tensão elétrica. Com isso era produzida uma faísca entre as esferas. Um receptor, que consistia em uma espira aberta e também com duas pequenas esferas de bronze, foi colocado a certa distância. Quando Hertz produziu faíscas pelo dispositivo principal, o receptor também passou a emitir faíscas. A formação de faíscas entre as esferas do receptor ocorria devido a produção de corrente elétrica na espira aberta. Tal corrente elétrica era induzida pelas ondas eletromagnéticas geradas pelo faiscamento do dispositivo principal.

“Estava construído o primeiro wireless da história!”

Poucos anos depois esse princípio foi usado para construção do telégrafo por Marconi, que culminou com a fabricação do rádio. E hoje desfrutamos de uma série de benefícios, incluindo o seu celular. Tudo graças a Hertz, Maxwell, Gauss, Ampére, Faraday, Marconi e muitos outros que fizeram da ciência a sua profissão.

POR QUE NOSSOS DEDOS ESTALAM QUANDO SÃO ESTICADOS? FAZ MAL ESTALAR?

Entre os ossos dos dedos há a presença do líquido sinovial, que lubrifica a articulação e permite o movimento suave e indolor. Nesse líquido há gases dissolvidos e quando os ossos são afastados um do outro, ocorre uma queda brusca de pressão no fluido. A pressão mais baixa no líquido permite que os gases se juntem, formando bolhas. Por meio de imagens de ressonância magnética foi possível constatar que durante o afastamento dos ossos é criada uma bolha de gás dentro do líquido sinovial.

Esquema da articulação de um dedo (esquerda) e imagem obtida por ressonância magnética, mostrando a formação de uma bolha após o estalo (direita).

O som do estalo, quando os dedos são esticados, foi atribuído a formação súbita dessa bolha interarticular – ver figura.No entanto, há indicativos de que a magnitude do som causado pela formação dessa bolha de gás é muito pequena, mas o estalo das juntas pode ser ouvido facilmente em uma sala. Um estudo com modelagem de sons sugere que o colapso (mesmo que parcial) dessa bolha seja o responsável por originar o som do estalo.

Apesar da formação de uma bolha ser parte do mecanismo de estalo da articulação, a exata origem do som ainda é discutível. Uma coisa é certa: são necessários entre 15 e 20 minutos para essa bolha se desfazer e ser possível um novo estalo!

ESTALAR CAUSA DANOS AOS DEDOS?

Quando criança, o médico Donald Unger ao estalar os seus dedos era advertido por sua mãe. Segundo ela e outras autoridades adultas o ato de estalar os dedos causa artrite. O espírito científico de Unger levou-o a fazer um experimento controlado com ele mesmo. Ao longo de 50 anos, ele estalou as articulações dos dedos da mão esquerda pelo menos duas vezes por dia. Os dedos da mão direita não eram esticados e serviram como controle. Assim, os dedos da mão esquerda foram estalados mais de 36.000 vezes. Depois de meio século o seu experimento foi publicado na revista científica Arthritis & Rheumatism, relatando que ele não encontrou artrite em nenhuma das mãos, nem qualquer outra diferença significativa entre elas.

O médico Donald Unger. Um estudo com ele mesmo que durou meio século.

Estudos posteriores também não mostraram qualquer relação.Um estudo mais recente, comparou um grupo de “estaladores” habituais com um grupo controle. Foi constatado um discreto aumento da espessura da cartilagem (ver figura acima a localização da cartilagem) dos ossos dos “estaladores” frequentes, mas não ocorreu alteração da força de preensão manual. Isso não significa que o ato de estalar deixe os dedos tortos ou mais grossos. Portanto, as evidências científicas indicam que a relação entre o “ato de estalar” e a artrite, o entortar ou o engrossar os dedos não passa de mais uma das inúmeras crenças difundidas entre nós!

REFERÊNCIAS

Chandran Suja V, Barakat AI (2018) A Mathematical Model for the Sounds Produced by Knuckle Cracking. Sci Rep 8. 4600. https://doi.org/10.1038/s41598-018-22664-4

Kawchuk GN, Fryer J, Jaremko JL, Zeng H, Rowe L, Thompson R (2015) Real-Time Visualization of Joint Cavitation. PLoS ONE 10(4): e0119470. https://doi.org/10.1371/journal.pone.0119470

Rizvi A, Loukas M, Oskouian RJ, Tubbs RS. (2018) Let’s get a hand on this: Review of the clinical anatomy of “knuckle cracking”. Clin Anat. 6:942-945. https://doi.org/10.1002/ca.23243

Unger DL (1998) Does knuckle cracking lead to arthritis of the fingers? Arthritis Rheum. 41(5):949-50. https://onlinelibrary.wiley.com/…/1529-0131(199805)41:5…

Yildizgören MT, Ekiz T, Nizamogullari S, Turhanoglu AD, Guler H, Ustun N, Kara M, Özçakar L. (2017) Effects of habitual knuckle cracking on metacarpal cartilage thickness and grip strength. Hand Surg Rehabil. 36(1):41-43. https://doi.org/10.1016/j.hansur.2016.09.001

A CLOROQUINA FUNCIONA?

Quando começou a pandemia da Covid, pesquisadores do mundo inteiro se mobilizaram em busca de antivirais. Remédios utilizados para outras doenças e com algum efeito antiviral começaram a ser testados. Entre esses, a cloroquina, usada contra a malária, mostrou-se altamente eficaz no controle da infecção pelo coronavírus in vitro. Ou seja, quando aplicada em culturas de células infectadas, a droga conseguiu bloquear a multiplicação do vírus. 

Com esse resultado promissor os pesquisadores chineses, tendo realizado o experimento, sugeriram que o medicamento fosse avaliado em pacientes humanos infectados pelo novo coronavírus [1].

Relatos da eficácia do uso da cloroquina e do seu derivado hidroxicloroquina por diversos médicos e em determinados estudos, principalmente o liderado pelo pesquisador francês Didier Raoult [2], levaram muitos profissionais e até políticos a defenderem o uso da droga [3, 4]. Posteriormente, surgiram outros estudos que também apontavam um efeito positivo da droga contra a Covid, como foi o caso de um realizado no Sistema de Saúde Henry Ford, em Detroit, Michigan [5].

A avaliação segura de um medicamento deve ser feita por meio de ensaios clínicos seguindo procedimentos que minimizem as interferência nos resultados, ou seja, de estudos randomizados controlados (RCT, do inglês Randomized Controlled Trial). 

Grupos não randomizados podem ter predominância de determinada característica, ocasionando vieses nos resultados.
A randomização (distribuição ao acaso) permite deixar os grupos similares, evitando vieses.

Há ainda outros procedimentos, como o uso de placebo e duplo-cego, que melhoram mais a qualidade do estudo (veja aqui).  

Os estudos de Raoult, do Sistema de Saúde Henry Ford e muitos outros não usaram um dos critérios mais básicos, que é a aleatorização das amostras (estudo randomizado). O de Raoult ainda apresentou outros problemas (veja aqui). A não aleatorização pode levar a interpretações erradas, pois se comparamos um grupo com predominância de jovens recebendo o medicamento e outro mais idoso como controle, poderemos ter um viés nos resultados. Outros fatores predominantes em um dos grupos testados e ausentes no outro também podem interferir. Foi exatamente isso que ocorreu com o estudo do Sistema de Saúde Henry Ford (veja aqui). A aleatorização (randomização) evita esse viés e mistura aleatoriamente os dois grupos que serão testados. 

Por outro lado, estudos controlados randomizados (RCT) mostraram ineficácia do medicamento em pacientes hospitalizados [6]. Há quase um consenso de que a cloroquina e hidroxicloroquina não devam ser administradas para casos avançados da doença. No entanto, muitos médicos e pesquisadores têm defendido o uso da cloroquina e hidroxicloroquina (associada a outros medicamentos) precocemente, ou seja, na fase inicial da doença. Existem cinco estudos controlados randomizados (RCT) sobre o uso precoce da hidroxicloroquina e, em nenhum deles, foram encontradas diferenças significativas em prol do uso da droga  [7, 8 , 9, 10, 11].  Na realidade, todos os cinco estudos indicam efeito de redução nas respostas (infecção, hospitalização e/ou morte) com o uso do da hidroxicloroquina, mas tais diferenças não têm significância estatística. Ou seja, as diferenças mínimas encontradas podem ser atribuídas ao acaso.  

No entanto, uma meta-análise (técnica estatística adequada para combinar resultados provenientes de diferentes estudos) desses cinco ensaios indica diferenças estatísticas [12]. Assim, segundo os pesquisadores responsáveis por esse estudo, os dados desses cinco ensaios controlados e randomizados mostram, conjuntamente, vantagem no uso da hidroxicloroquina. Porém, o próprio líder do estudo, Harvey Risch, reconhece um ponto fraco dessa meta-análise, uma vez que que infecções, hospitalizações e mortes foram agrupadas em um “resultado composto” [13]. Combinar todos esses eventos em um grande número torna mais provável que os pesquisadores obtenham um efeito significativo estatisticamente (veja mais aqui). 

A ausência ou incerteza de uma ação antiviral da cloroquina e hidroxicloroquina são incongruentes com os resultados in vitro, que mostraram alta efetividade para evitar a infecção pelo vírus. 

CÉLULAS ERRADAS

O experimento in vitro realizado pelos pesquisadores chineses utilizou a cultura de células chamadas Vero E6 [1]. Essas células são provenientes do rim do macaco africano Chlorocebus aethiops. Culturas com esse tipo de células são úteis e frequentemente usadas pelos virologistas porque permitem o crescimento de uma ampla variedade de vírus. No entanto, um estudo realizado por pesquisadores alemães do Centro de Primatas em Göttingen [14] verificou que a forma como o coronavírus (SARS-CoV-2) infecta as células renais de macacos é diferente da maneira como faz com as células pulmonares humanas.

Cultura de células Vero E6 são originadas do rim do macaco africano Chlorocebus aethiops. A cultura de células Calu-3 é produzida a partir de células do epitélio do pulmão dos humanos Homo sapiens.

Para infectar diferentes tipos de células, o coronavírus tem pelo menos duas vias principais de entrada possíveis.

Em uma delas, o vírus entra nas células por meio de compartimentos celulares especiais chamados endossomos. Depois de se ligar ao receptor ACE2 da membrana celular, o vírus é engolfado por um endossomo, mas o patógeno precisa retirar seu material genético (RNA) desse compartimento e colocá-lo no citoplasma da célula. Para isso, é necessário que a proteína spike seja clivada pela enzima catepsina, permitindo que as membranas viral e celular se fundam liberando, assim, o material genético do vírus. 

Na outra via, a proteína spike do vírus se liga à proteína ACE2 na membrana celular e, em seguida, uma enzima chamada TMPRSS2 corta a proteína spike. Esse processo permite que o vírus injete seu material genético na célula, onde mais cópias do vírus são produzidas.

O coronavírus SARS-CoV-2 pode entrar nas células por pelo menos duas vias. Em uma via (à esquerda), o vírus se liga ao ACE2 e, em seguida, a célula envolve o vírus em um compartimento denominado endossomo.  Após essa etapa, a catepsina quebra a proteína spike, permitindo a fusão do vírus com a membrana e a transferência do material genético (RNA) do vírus para o citoplasma da célula. Em outra via (à direita), a enzima TMPRSS2 corta a proteína spike, fazendo com que as membranas celular e viral se fundam, permitindo que o material genético do vírus escape diretamente para o citoplasma da célula. Adaptado de “Hydroxychloroquine can’t stop COVID-19. It’s time to move on, scientists say”. Science News.

Em células Vero de macacos, o coronavírus usa a via dos endossomos. Mas a enzima catepsina precisa de um certo nível de acidez para fazer o corte da proteína spike. Nas células dos tecidos respiratórios humanos há a presença da enzima TMPRSS2 [15] e o coronavírus segue o caminho mais direto usando essa enzima, que não é encontrada nas células do macaco.

A hidroxicloroquina e a cloroquina aumentam muito o pH (ou seja, diminuem a acidez), impedindo que a catepsina corte a proteína SPIKE. Dessa forma, essas drogas inibem a infecção nas células do macaco. Quando os pesquisadores testaram as drogas em células pulmonares humanas cultivadas em placas de laboratório (Calu-3), o vírus penetrou facilmente nas células. Isso porque, nas células pulmonares, o coronavírus segue o caminho mais direto usando o TMPRSS2 que a cloroquina e a hidroxicloroquina não inibem.

A catepsina, que quebra a proteína spike, é debilitada pela hidroxicloroquina nas células renais dos macacos, inibindo uma infecção.
A rota de entrada em células do pulmão humano, via enzima TMPRSS2, não é bloqueada pela hidroxicloroquina.

Outro estudo desenvolvido por pesquisadores franceses chegou ao mesmo resultado, mostrando que a hidroxicloroquina inibe a infecção por coronavírus das células Vero de macaco, mas não das células do pulmão humano [16]. 

Aplicação crescente de cloroquina e a quantidade de vírus detectada em cultura de células de rim do macaco Chlorocebus aethiops (Vero), à esquerda, e em cultura de células de pulmão humano (Calu-3), à direita. Extraído de Nature 585, página 589.

No início tínhamos testes em culturas de células de macacos que indicavam um efeito promissor da cloroquina/hidroxicloroquina para bloquear a replicação do coronavírus. O uso em pacientes com Covid provocou inúmeras controvérsias sobre o uso da droga para combater a doença. Agora novos testes mostram que cloroquina/hidroxicloroquina não impedem a multiplicação do coronavírus em culturas de células do trato respiratório humano. Aos poucos a ciência vai saneando as dúvidas por ela mesma criada!  

REFERÊNCIAS

[1] – Wang, M., Cao, R., Zhang, L. et al. 2020. Remdesivir and chloroquine effectively inhibit the recently emerged novel coronavirus (2019-nCoV) in vitro. Cell Res 30, 269–271. https://doi.org/10.1038/s41422-020-0282-0

[2] – Gautret P, Lagier JC, Parola P, et al. 2020. Hydroxychloroquine and azithromycin as a treatment of COVID-19: results of an open-label non-randomized clinical trial. Int J Antimicrob Agents. 2020;56(1):105949. doi:10.1016/j.ijantimicag.2020.105949

[3] – Ferner, R. E. & Aronson, J. K. 2020. Chloroquine and hydroxychloroquine in covid-19. Br. Med. J. 369, m1432.

[4] – Lenzer, J.  2020. Covid-19: US gives emergency approval to hydroxychloroquine despite lack of evidence. BMJ2020;369:m1335. doi:10.1136/bmj.m1335pmid:32238355

[5] – Arshad S, Kilgore P, Chaudhry ZS, et al. 2020. Treatment with hydroxychloroquine, azithromycin, and combination in patients hospitalized with COVID-19. Int J Infect Dis. 2020;97:396-403. doi:10.1016/j.ijid.2020.06.099

[6] – Horby, P.,  Mafham, M, Linsell, L, Bell, J. L. et al, 2020. Effect of Hydroxychloroquine in Hospitalized Patients with COVID-19: Preliminary results from a multi-centre, randomized, controlled trial medRxiv 2020.07.15.20151852; doi: https://doi.org/10.1101/2020.07.15.20151852

[7] – Mitjà O, Ubals M, Corbacho-Monné M, et al. 2020. A cluster-randomized trial of hydroxychloroquine as prevention of COVID-19 transmission and disease. Preprints July 26, 2020. https://doi.org/10.1101/2020.07.20.20157651

[8] – Mitjà O, Corbacho-Monné M, Ubals M, et al. 2020. Hydroxychloroquine for early treatment of adults with mild COVID-19: A randomized-controlled trial. Clin Infect Dis 2020 Jul 16:ciaa1009. https://doi.org/10.1093/cid/ciaa1009

[9] – Boulware, M. D., Matthew M. P. H., Pullen,  F. et al. 2020. A Randomized Trial of Hydroxychloroquine as Postexposure Prophylaxis for Covid-19. The New England Journal of Medicine 383:517-525. https://www.nejm.org/doi/full/10.1056/NEJMoa2016638#article_citing_articles  

[10] – Rajasingham R, Bangdiwala AS, Nicol MR, et al. 2020. Hydroxychloroquine as pre-exposure prophylaxis for COVID-19 in healthcare workers: a randomized trial. Preprints September 21, 2020. https://www.medrxiv.org/content/10.1101/2020.09.18.20197327v1

[11] – Skipper, C. P., Katelyn M.D., Pastick, A. 2020. Hydroxychloroquine in Nonhospitalized Adults With Early COVID-19. Annals of Internal Medicine https://www.acpjournals.org/doi/10.7326/M20-4207

[12] – Ladapo, J. A., McKinnon, J. E.,  McCullough, P. A., Risch, H. A. 2020. Randomized Controlled Trials of Early Ambulatory Hydroxychloroquine in the Prevention of COVID-19 Infection, Hospitalization, and Death: Meta-Analysis (não publicado) medRxiv 2020.09.30.20204693; doi: https://doi.org/10.1101/2020.09.30.20204693

[13] – Maybe too soon to rule out hydroxychloroquine; tricking the immune system. Reuters,  HEALTHCARE & PHARMA https://www.reuters.com/article/us-health-coronavirus-science-idUSKBN26N3F1

[14] – Hoffmann, M., Mösbauer, K., Hofmann-Winkler, H. et al. 2020. Nature 585, 588–590 (2020). https://doi.org/10.1038/s41586-020-2575-3

[15] – Iwata-Yoshikawa N, Okamura T, Shimizu Y, Hasegawa H, Takeda M, Nagata N. 2020. TMPRSS2 Contributes to Virus Spread and Immunopathology in the Airways of Murine Models after Coronavirus Infection. J Virol. 2019;93(6):e01815-18. Published 2019 Mar 5. doi:10.1128/JVI.01815-18

[16] – Maisonnasse, P., Guedj, J., Contreras, V. et al. 2020. Hydroxychloroquine use against SARS-CoV-2 infection in non-human primates. Nature 585, 584–587 (2020). https://doi.org/10.1038/s41586-020-2558-4

A TERRA JÁ FOI UM INFERNO, MAS NÃO DUROU MUITO!

A origem da Terra é estimada em cerca de 4,5 bilhões de anos. Durante o início do nosso planeta havia um mar de lava e as temperaturas eram elevadíssimas. Esse período inicial da Terra é chamado de Hadeano (que significa Deus das profundezas, inferno). Por muito tempo, a ciência admitiu que tal condição durou meio bilhão de ano. Portanto, o inferno terrestre teria se estendido até 4 bilhões de anos atrás.

O FRAGMENTO QUE ENCOLHEU O PERÍODO INFERNAL

A crosta terrestre teria surgido na era Arqueana, há cerca de 4 bilhões de anos, logo após o fim da era Hadeana. Desde início do século, estudos com o mineral zircão vêm sugerindo que a crosta poderia ter surgido antes. Um estudo realizado em 2014 com um pequeno fragmento de zircão encontrado em Jack Hill, na Austrália, revelou de modo seguro que ele possuía 4,4 bilhões de anos. A existência desse fragmento indica que a crosta terrestre teria se formado muito antes. Tal fragmento construiu um novo cenário da história de nosso planeta. Hoje devemos admitir que o inferno terrestre não durou meio bilhão de ano, mas apenas 100 milhões de anos.

O ESTUDO

O zircão apresenta traços de urânio. Sabe-se que o urânio é instável e se transforma em chumbo em um período conhecido de bilhões de anos. Por meio de uma técnica extremamente precisa, utilizando uma sonda de tomografia atômica, foi determinada a quantidade de chumbo em pequenas regiões do fragmento de zircão. Com isso foi calculado a idade do fragmento de zircão de Jack Hills, o pedaço de rocha mais antigo do planeta!A antecipação do surgimento da crosta terrestre levou alguns cientistas especularem que a origem da vida, datada em 3,6 bilhões de anos, poder ter surgido antes. A cada passo da ciência vamos comprendendo mais a história da Terra e a evolução da vida. Novos fatos surgirão e talvez mudemos o cenário vigente no futuro. Mas isso se, antes, o homem não transformar a Terra em um novo inferno!

REFERÊNCIAS:

https://dx.doi.org/10.1038/ngeo2075

TODOS OS CORONAVÍRUS DO MUNDO CABERIAM EM UMA LATA DE REFRIGERANTE!

Para calcularmos o volume de coronavírus existentes no mundo precisamos inicialmente responder três questões:

1) quantos coronavírus há em cada pessoa infectada?

2) quantas pessoas estão infectadas?

3) Qual o volume de cada coronavírus?

Quantos coronavírus há em cada pessoa infectada?

Um estudo estimou que a quantidade de coronavírus (SARS-CoV-2) no pico de carga viral varia de 1 bilhão a 100 bilhões de partículas de vírus. 

No entanto, nem todos os infectados estão no pico de carga viral. Assim, a quantidade de coronavírus de cada pessoa atualmente infectada depende de há quanto tempo foram contaminadas. Acredita-se que as cargas virais aumentem e cheguem ao pico cerca de seis dias após a infecção e depois diminuam continuamente.

Assim, as pessoas infectadas há seis dias terão a carga viral máxima. Entre as pessoas que estão contaminadas no momento, aquelas que foram infectadas há cinco ou sete dias contribuirão um pouco menos para a contagem total. Aquelas infectadas há quatro ou oito dias contribuirão um pouco menos ainda, e assim por diante. 

Quantas pessoas estão infectadas?

Segundo o site Our World in Data, meio milhão de pessoas testam positivo para COVID diariamente. No entanto, muitas pessoas não são incluídas nesta contagem porque são assintomáticas ou por não terem sido testadas. Por meio de modelos estatísticos e epidemiológicos, o Institute for Health Metrics and Evaluations estima que o número real de pessoas infectadas a cada dia é de cerca de 3 milhões.

Uma vez que sabemos aproximadamente como a carga viral muda ao longo do tempo, é possível termos uma estimativa da carga viral total da população mundial. Podemos trabalhar com um valor no meio (média geométrica) do intervalo de 1 a 100 bilhões, estimado para a carga viral máxima por pessoa, que é de 10 bilhões. Se somarmos todas as contribuições para a carga viral de cada uma das 3 milhões de pessoas que foram infectadas em cada um dos dias anteriores (assumindo que essa taxa de 3 milhões de infectados seja aproximadamente constante), descobrimos que há cerca de duzentos quatrilhões (2×10¹⁷ ou duzentos milhões de bilhões) de partículas de vírus no mundo a qualquer momento.

Qual o volume de cada coronavírus?

A estimativa do diâmetro de um coronavírus varia de 80 a 120 nanômetros. Um nanômetro é um bilionésimo de um metro. Para colocar em perspectiva, o raio do coronavírus é cerca de 1.000 vezes mais fino do que um fio de cabelo humano. Podemos assumir o valor médio para o diâmetro de 100 nanômetros para o cálculo subsequente.

Sendo o coronavírus aproximadamente esférico, para calcular o seu volume devemos usar a fórmula para o volume de uma esfera que é:

V = 4 π r³ / 3

Sendo o raio do coronavírus de 50 nanômetros (metade do diâmetro), temos:

V = 4 π 50³ / 3 =  523.000 nanômetros.

Multiplicando este pequeno volume (523.000 nanômetros) pelo número de partículas que existem no mundo (2×10¹⁷) e convertendo em unidades significativas, isso resulta em um volume total de cerca de 120 ml.

No entanto, se  quiséssemos agrupar todos esses coronavírus juntos em um só lugar, precisaríamos lembrar que as esferas não se compactam perfeitamente, quando empilhadas.

Os espaços vazios, entre as esferas de laranja, ocupam aproximadamente 26% do volume total. Isso faz com que o volume total de coronavírus agrupados seja de 160 ml, que corresponde a menos da metade do volume de uma lata de refrigerante.

Mesmo se considerássemos os maiores diâmetros de coronavírus, 120 nanômetros, e levando em consideração o tamanho dos espinhos, ainda assim todos os coronavírus do mundo  não encheriam uma lata de refrigerante.

Todos esses cálculos foram realizados pelo biólogo matemático Christian Yate da Universidade de Bath, do Reino Unido, no artigo “All the coronavirus in the world could fit inside a Coke can, with plenty of room to spare”, no “The Conversation” 

https://theconversation.com/all-the-coronavirus-in-the-world-could-fit-inside-a-coke-can-with-plenty-of-room-to-spare-154226

REFERÊNCIAS:

Ron Sender, Yinon M. Bar-On, Avi Flamholz, Shmuel Gleizer, Biana Bernsthein, Rob Phillips, Ron Milo. The total number and mass of SARS-CoV-2 virions in an infected person. medRxiv 2020.11.16.20232009; doi: https://doi.org/10.1101/2020.11.16.20232009 

Our World Data https://ourworldindata.org/Health Metrics and Evaluations http://www.healthdata.org/